terça-feira, 15 de setembro de 2009

Ventos de Agosto

Na noite de segunda-feira dia 11 de agosto do ano de 2008, no auditório da SECULT – FOR, fui ao encontro de uma experiência profunda e transformadora de teatro em minha vida: o curso "O Tempo de Stanislavsky", ministrado pelo Professor Decano da Academia Russa de Arte Teatral Valentin Teplyakov. Falo não só por mim, mas também, por alguns colegas que tiveram a coragem de se entregar a uma proposta radical e verdadeira de pesquisa do humano e da arte. Na primeira noite tivemos a abertura do curso. Nas primeiras palavras nos deparamos com um senhor alto, de voz forte, concentrado e sereno na sua sabedoria. A fala mansa e pausada, dos primeiros dez minutos, foi aos poucos cedendo espaço para um outro personagem: o do homem apaixonado pela sua cultura e pelo teatro. Ao fim da noite senti como se tivesse iniciado uma longa e rica viagem, mas para onde? Para a Rússia de Stanislavsky, ou para a antiga União Soviética, tão cuidadosamente retratada pelo mestre Valentin? Não, viajara para encontrar-me comigo mesma, num mergulho profundo no Ser. Mas aquele ainda não seria o momento do encontro, mas sim, o momento de partida para este.

Há alguns anos fora dos palcos e da vida artística profissional, eu estava feliz e aterrorizada com o meu futuro, o que me esperaria, e o que é mais doloroso, o que se perdera no tempo e não mais estaria no meu caminho? Esta pergunta, não seria somente minha, pois no decorrer do curso ele nos mostrou o quanto de verdadeiros fomos em nossa infância e o quanto bloqueados, falsos e convencionais somos na condição de adultos cheios de seguranças aparentes e de imagens a preservar. Mas, o que é o teatro? É vida! É a arte da vida plena e profunda revelada em cenas aparentemente casuais ou comezinhas, ou em grandiosos momentos épicos.

Logo na primeira noite foi-nos lançado um desafio por parte de Valentim: - Amanhã quero ver as cenas de vocês! E no dia seguinte, se instalou um constrangido silêncio. Como eu tinha ensaiado na madrugada, lancei-me ao cadafalso, pois o autor escolhido Tchekov é muito mais que um autor difícil, ele é um autor genial. Mas não me atreveria a perder esta oportunidade, pois sempre defendi que os grandes autores e grandes personagens formam um ator. Então, com cerimônia e muita expectativa entrei em cena. Como fui desajeitada e tímida, mas apesar dos entraves iniciais, algo brotou em minha alma, instigando-me a me projetar na personagem vivida. Eu queria fazer tudo de novo, e mais uma vez, e mais... Eu queria viver a verdade e aceitaria qualquer crítica, por mais dura e constrangedora que fosse para poder viver verdadeiramente a personagem.

No dia seguinte repeti, mais a vontade e mais íntima. Mesmo assim, tudo era ainda muito nebuloso e confuso, como se somente a sorte e a fortuna tivessem me guiando. No terceiro dia começamos a vislumbrar um elenco para uma cena, pois ainda me apresentava como se estivesse num monólogo. A cena foi começando a dar ares de embrião, e nós fomos nos envolvendo mais e mais no universo de Stanislavasky e de Tchekov. A esta altura a oficina passou a ocupar outros momentos de nossas vidas, e passamos a entrar num estado de concentração permanente. Isto acontecia devido às indagações que o Prof. Teplyakov nos lançava a cada vez que entrávamos em cena. Com sua franqueza sempre contundente e objetiva, ele nos passava uma segurança de alguém que é fiel a verdade artística e tem respeito ao aluno e ao ator. Por mais dolorosa e até desconcertante que fosse a sua crítica eu sempre me sentia feliz por ter tido a oportunidade de estar vivendo aquele momento.

O estado de inquietação foi constante, parecia que Valentin tinha quebrado a minha espinha dorsal, e agora me convidava para dançar. Atônita, mas muito instigada pela sua revolução, eu fechei meus olhos para os espelhos e fui me permitindo, mesmo que cuidadosamente, viver cada mergulho na profunda alma da personagem Olga Prozorov da obra “Três Irmãs” de Tchekov. Esta experiência muito me revelou, de forma encantadora e apaixonante, sobre o humano, sobre mim mesma, e sobre o teatro. Daí pode-se concluir: como a arte é necessária ao homem. A vida na arte, transcende ao imediato, ao falível, ao banal, ao vulgar, ou seja, a tudo que nos deixa pregados ao chão e nos faz pequenos.

A aula final foi uma apresentação sincera e concentrada de nosso trabalho de três semanas. Ao fim, estávamos felizes, de uma felicidade diferente, como se estivéssemos sentido o dedo de Deus a nos tocar o coração. Realizamos uma comunhão com o olho atento, sensível e perspicaz do nosso mestre, com o público e com as nossas almas. Neste momento sagrado, senti que o trem já havia partido, e a revolução, para qual nos recrutou Valentin, havia por fim se iniciado.

Por esta vivência e por outras experiências é que defendo que o melhor que possa ser feito a um povo e aos seus artistas é dar-lhes condições para que possam realizar uma sólida e contínua formação, pois, caso contrário, viveremos no campo da boa vontade de quem nos assiste e da insatisfação de não ter dado tudo de si em cena. A formação é a maneira mais democrática de dar oportunidade ao artista de se descobrir e de se desnvolver. E esta responsabilidade é pública, pois a cultura e a educação de um povo são responsabilidades públicas.

Ecila Meneses